O DESABAFO
Maria Letras sopa-de-letras
Era noite. Mais escura do que breu.
A sua pele, doce e negra deslizava
Como pétala de rosa aveludada
Sobre o corpo carente, todo seu
Que ébrio de volúpia delirava
Em ondas de agonia adivinhada
Se Deus os fez, Deus os juntou
Macho e fêmea em comunhão
Desejando alcançar o paraíso
Mas dessa longa noite o que ficou
Foi algo que tocou o coração
Muito mais do que o corpo sem juízo
Corpos saciados e em repouso
O seu rosto negro sobre os seios nus
Derramava as palavras lentamente
Num desabafo triste e doloroso
Por momentos, pousou a sua cruz
E ali se confessava como um crente
Filhos de pai branco e de mãe preta
Ele e a irmã foram felizes
Nessa África que os viu nascer
Mas a vida é um jogo de roleta
Veio o dia em que, sendo ainda petizes,
Entre pai e mãe tiveram que escolher
A lágrima quente rolou no peito dela
E soltou-se, num soluço, essa verdade
Que escondia bem no fundo do seu ser
Nem o mais triste enredo de novela
Poderia mostrar tanta saudade
Tanto remorso, tanta dor, tanto sofrer
-Ficou lá! Deixámos lá a minha mãe!
Embarcamos com o pai para Lisboa
Fugimos e não a pudemos trazer.
Não sei se está mal ou se está bem
Dentro de mim o seu pranto ainda ecoa
E carrego esta culpa até morrer!
Maria Letras, UK
16.01.2023